O Eu, o Outro, o Indivíduo e a Sociedade por Pablo de Assis

Hoje percebi que o tema que tem mais postagens minhas é o de Psicologia e Sociedade. E refletindo sobre isso vi que, mesmo este blog tratando de psicologiatecnologia tudo mais, meu foco maior está sendo nas questões sociais mais relevantes e – muitas vezes – mais polêmicas. E me perguntei: por que esse meu interesse?
E percebi que o interesse está justamente na desinformação social com relação aos focos e conceitos das discussões. Passo bastante tempo discutindo com pessoas sobre algumas questões sociais, como a violência e os direitos civis, para perceber que muitos – se não todos – os posicionamentos se colocam ou em um ou outro ponto de uma balança bem delicada: o problema maior está no indivíduo ou na sociedade?
Vou pegar como exemplo um dos temas de discussão mais atuais, a diminuição da maioridade civil. Adolescentes mantando pessoas ultimamente têm trazido à tona a discussão sobre se adolescentes merecem ser presos e tratados como adultos pelos crimes cometidos. E muitos argumentos são lançados a favor e contra o assunto. Alguns dizem que o jovem já têm consciência sobre seus atos e merece ser punido, outros dizem que ele é só mais uma vítima dos problemas sociais e que medidas socioeducativas são melhores do que a cadeia. Uns voltam e dizem que prendendo adolescentes os adultos pararão de utilizá-los como bode-expiatório de seus crimes e outros voltam a dizer que cadeia não ressocializa nem diminui a violência urbana.
No final das contas, os argumentos estão todos centrados em dois pontos opostos: a responsabilidade do indivíduo versus a responsabilidade social. Os críticos dos argumentos da responsabilidade do indivíduo colocam o maior peso sobre a sociedade e sobre as ações do governo: ao invés de cadeias, é melhor investir em escolas e ao invés de prisão para os jovens, melhor investir em educação. Mas essas são ações governamentais e sociais. Ao mesmo tempo, os críticos dos argumentos sociais colocam o peso da responsabilidade sobre o indivíduo: ações governamentais não funcionam e foi o jovem que quis cometer o crime não a sociedade, foi ele quem puxou o gatilho, é o indivíduo precisa de proteção contra essas ações individuais e que só quem esteve com uma arma apontada na cabeça por um desses marginais é que sabe o terror de ter indivíduos criminosos aterrorizando indivíduos cidadãos.
Todos esse são argumentos válidos e, de fato, a discussão passa a ser não mais sobre a violência urbana mas sim sobre de quem é a responsabilidade, do indivíduo ou da sociedade. Mas, no fundo, essa discussão acaba mascarando um outro problema ainda maior e mais delicado: a responsabilidade deve ser minha ou deve ser do outro?
Sobre quem deve ser o foco, eu o os outros?
É clara a distinção entre indivíduo e sociedade, pois o primeiro é individual e o segundo é a identidade do grupo. E é clara a diferença entre eu e o outro. Mas é difícil perceber a diferença entre o eu, o outro, o indivíduo e a sociedade. Quando colocamos esses quatro juntos, as coisas ficam bem confusas.

Por exemplo: quando digo que defendo a responsabilidade da sociedade, estou dizendo que eu estou me implicando nessa sociedade ou estou dizendo que a sociedade é o governo e o governo é um outro que deve fazer a ação? Ou seja, eu enquanto sociedade devo me responsabilizar também ou quem deve fazer isso é só o governo… Ao mesmo tempo, quando defendo a responsabilidade do indivíduo estou dizendo que eu enquanto indivíduo devo também me responsabilizar ou deixar que o outro enquanto indivíduo se responsabilize sozinho? São nesses momentos que as coisas começam a ficar bem confusas e a posição mais comum é retirar o “eu” da jogada e deixar que o indivíduo e a sociedade sejam somente o outro.
E é aí que entra o grande problema: nunca conseguimos tirar o “eu” da jogada. É falacioso achar que responsabilizando o outro iremos resolver os problemas sociais. E é errado achar que os problemas são só do outro e eu não tenho nada a ver com isso a não ser cobrar dele. O que me lembra de um conto chinês:
Quando percebi que a cidade estava fora do Tao, meditei.
Havia um vilarejo que ficava em uma região que estava passando por uma grande seca. Os pastos haviam morrido e os rios estavam secos. Os animais estavam morrendo e as pessoas estavam ficando sem alimento. Foi quando a cidade descobriu a existência de um monge que sabia fazer chover. Eles então o chamaram com urgência e ele apareceu no dia seguinte. O monge então pediu, para fazer chover, que ele ficasse em uma barraca às margens da cidade, sem que ninguém o perturbasse. Passou um dia e nada. Passou o segundo dia e nada. Passou o terceiro dia e ainda nada de chuva. Mas no quarto dia choveu. E foi a salvação, pois os rios voltaram a encher, os animais tiveram o que beber e a cidade estava salva. Após o agradecimento, o povo perguntou por que demorou quatro dias para fazer chover, ao que o monge respondeu: “Quando cheguei na barraca, percebi que a seca estava acontecendo porque o mundo não estava no Tao: então meditei. No segundo dia percebi que a cidade ainda não estava no Tao, então meditei. No terceiro dia percebi que a minha barraca ainda não estava no Tao e meditei. No quarto dia percebi que eu não estava no Tao e meditei. Quando entrei no Tao foi quando choveu.

O Tao, para os chineses, é a força ta totalidade e do equilíbrio. O Tao é o cheio e o vazio, é o alto e o baixo, é o tudo e o nada ao mesmo tempo. Se existe algum desequilíbrio – como uma seca ou uma cidade muito violenta – é porque não estamos no Tao, não estamos respeitando as forças opostas da natureza: não estamos em equilíbrio. E qual foi a solução do monge? Diante de um problema natural que afetavam as pessoas, foi o indivíduo que precisou entrar em equilíbrio. Mas não um indivíduo “outro”, mas sim o indivíduo “eu”. Se eu quero mudança, a mudança precisa começar por mim, não pelo outro.
Queremos mesmo dar um basta à violência?
Se eu quero menos violência urbana – e acredito que todos querem isso, tanto os que apoiam a diminuição da maioridade penal quanto os que são contra – a violência urbana precisa terminar comigo. Não existe como eu exigir que o outro faça alguma coisa que é problema meu, não tenho como exigir que o jovem seja menos violento se eu sou violento com ele! A responsabilidade nunca é do outro: ela é sempre minha. E é isso que assusta as pessoas e é isso que faz com que eu prefira responsabilizar o outro – seja ele o criminoso ou o governo – pelos problemas sociais.

Mas se olharmos os grupos menores, talvez fique mais fácil perceber. Em uma família, o pai se responsabiliza pelo filho não porque o pai é o outro do filho sobre o qual as ações do filho recaem: o pai se responsabiliza pelo filho porque tanto o filho quanto o pai pertencem à mesma família. Diante disso, tanto o pai quanto o filho agem em nome da família e ambos se responsabilizam, pois é sobre a família que recai as consequências dos atos de um só. A não ser que o pai não queira se responsabilizar e deixar que o outro, seu filho, se responsabilize sozinho, é necessário perceber que a responsabilidade recai sobre o eu familiar e sobre todos que se identificam com essa família.
Isso acontece o tempo todo com o futebol! Quando o meu time ganha ou perde, eu sou responsabilizado por isso por me identificar com meu time. Posso tanto celebrar junto quanto apanhar sozinho por defender um time. No caso dos doze brasileiros que torcem para o Corinthians que estão presos na Bolívia, não é só a “nação corinthiana” que se comove, mas é também o brasil todo. Um país todo comovido com a situação ultrajante de doze cidadãos, que não são “outros” diferentes, mas são “eu”s como eu sou.
Mas o eu se responsabilizar não quer dizer levar as coisas nas próprias costas e nem resolver os problemas com as próprias mãos. A questão aqui está em perceber que o problema que me incomoda é meu e eu tenho que fazer parte da solução. Se o problema é social e ele me incomoda, então devo perceber em mim o problema e começar a mudança por mim.
Não vejo nada, não falo nada, não ouço nada e me omito. Mas eu escolhi me omitir.
Então me pergunto: o que eu tenho a ver com o assassinato do jovem cidadão pelo jovem marginal? Não estava lá, não puxei o gatilho nem conhecia as famílias dos envolvidos. Mas então por que é que eu quero que o outro seja preso e seja punido? E a resposta é bem simples – e não consigo ver outra diante disso: é porque EU não quero me responsabilizar. Mas por que deveria? Simples: toda responsabilidade vem das escolhas que fazemos, de termos que lidar e aceitar as consequências das nossas escolhas, sejam elas atos ou omissões. Eu fazer algo terá tantas consequências quanto eu não fazer nada. E eu devo sim me responsabilizar por isso.

Mas isso não quer dizer que eu devo ser punido por isso! Responsabilidade não é culpa. Responsabilidade não é assumir o castigo. Responsabilidade é saber arcar e aceitar as consequências de nossas escolhas, sejam elas quais forem. Responsabilidade é perceber que ao fazer uma escolha, abro mão de outra. Responsabilidade é perceber que são essas escolhas que constroem a minha vida. Responsabilidade é perceber que, apesar da enorme angústia gerada diante do reconhecimento de que sou eu quem faço a minha vida, que a cada escolha feitaeu abro mão de outra e que devo aceitar e arcar com as consequências imprevistas das minhas escolhas, devo me manter fiel às minhas escolhas.
Então, quando digo que é o outro que deve se responsabilizar, eu tiro a minha responsabilidade da reta: ou seja, estou sendo irresponsável. É ao menos irônico – para não dizer, hipócrita – querer que o outro se responsabilize sozinho sem que eu me responsabilize junto. Então eu devo sim me responsabilizar por minhas posições de raiva e ódio com relação aos marginais. Devo sim me responsabilizar em querer prendê-los e tirar-lhes o futuro para poder garantir o meu futuro lindo e sem crimes. Devo sim me responsabilizar pelas más condições sociais que muitas vezes eu ajudo a construir, quando compro drogas recreativas ou produtos contrabandeados. A responsabilidade também é minha quando eu voto em políticos corruptos que não querem investir em educação ou usam as crianças como plataforma de lançamento, mas depois as esquecem.
Se eu quero uma sociedade melhor para eu viver, então eu preciso me implicar nesta sociedade e tê-la como minha também. E devo me responsabilizar por ela. E devo querer para os outros a mesma coisa que quero para mim. Aposto que ninguém que defende a diminuição da maioridade penal quer ver seu filho de 16 preso numa cadeia cheia de marginais PhD’s em crime. Aposto que ninguém que defende a cadeia quer ser preso também. E por que devo querer isso para o outro e não para mim? Isso é hipocrisia e irresponsabilidade.
A sociedade não é um outro: a sociedade sou eu!
Por isso foco tanto na ação social. Mas não na sociedade como um outro, mas a sociedade como um eu. Por isso digo que a ação deve vir do sujeito e a mudança deve começar comigo. Eu devo ser o parâmetro para as ações e escolhas sociais. Se não reconheço isso, sou irresponsável. Só voto em corruptos para o governo e o legislativo porque eu sou corrupto. Só apoio a violência policial e do sistema carcerário porque eu sou violento. Só não quero investir em educação em nome de outros valores porque eu sou ignorante. Só não quero aceitar o outro como ele é porque eu não me aceito como sou.

O olhar sobre o outro é ao mesmo tempo um olhar sobre eu mesmo. Vejo o outro com os mesmos olhos como me vejo. Mas estamos tão acostumados com o espelho que achamos que para nós serve o contrário: se quero paz para mim, posso desejar guerra ao outro, por exemplo. Mas o nosso olhar nos mostra como nos olhamos: se vejo o outro distorcido assim é porque eu me vejo distorcido também. E o complicado é que se eu vivo em uma sociedade da qual exijo tudo mas que não me identifico e vejo como errada é porque eu não sei me identificar e me vejo errado.
Porque antes de ser cidadão de um país ou morador de uma cidade ou membro de um grupo sou também um ser humano existente neste planeta e um ser vivo deste universo. E dessa forma sou tão igual aos outros seres humanos e outros seres vivos. Por que devo querer algo diferente a eles e não a mim? Pensar na sociedade é pensar no eu e no outro ao mesmo tempo, como se fossem um só. Pensar a sociedade é um pensar inclusivo e não exclusivo, como é pensar o indivíduo. Pensar as ações sociais diante disso então é pensar como eu posso agir que irá mudar os outros.
É possível equilibrar o indivíduo e a sociedade. Mas é necessário que todos sejam eu.
Se não consigo mudar meu planeta, que tente mudar meu país. Se não consigo mudar meu pais, que tente mudar meu estado. Se não consigo mudar o estado, que mude ao menos a cidade. Se ainda assim a cidade for muito grande, que comece mudando o meu bairro. Se meu bairro for muito difícil, que mude a minha rua. Se a minha rua for muito complicada, que mude a minha casa. Se a minha casa for impossível, que comece mudando a mim mesmo. Se eu estiver no Tao, o resto entrará no Tao e então a chuva virá aplacar a seca.




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